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MP apura se Igreja Universal interferiu em Conselhos Tutelares

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O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) está investigando a eleição para a Comissão de Ética dos Conselhos Tutelares do Município do Rio.

Segundo denúncias apresentadas aos promotores, a votação foi fraudada com o objetivo de ampliar o domínio da Igreja Universal no órgão — responsável por garantir os direitos de crianças e adolescentes na cidade.

A Prefeitura do Rio afirma que o Conselho Tutelar é um órgão independente e autônomo, mas em fevereiro deste ano criou na estrutura do Poder Executivo Municipal a Coordenadoria de Apoio aos Conselhos Tutelares e nomeou para o cargo um membro da Universal, igreja da qual o prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) é bispo licenciado.

O escolhido foi Ahlefeld Marynoni Fernandes, um ex-conselheiro afastado do cargo por suspeita de corrupção. Ele foi impedido de participar das últimas eleições, por recomendação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), órgão responsável por formular e deliberar políticas públicas relativas a crianças e adolescentes.

Conhecido como Rolifid, ele é integrante do grupo de Whatsapp ‘Guardiões do Crivella’, que monitora o esquema montado com funcionários da prefeitura para fazer plantão na porta dos hospitais municipais do Rio, com o objetivo de atrapalhar reportagens e impedir que a população fale e denuncie problemas na área da Saúde.

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Comissão de Ética
A eleição para a Comissão de Ética dos Conselhos Tutelares foi realizada em janeiro de 2020 e elegeu cinco membros, todos evangélicos.

Segundo outros conselheiros, o grupo passou a perseguir trabalhadores que seguem outras religiões, além de desvirtuar a função dos conselhos tutelares.

“O projeto de poder deles é ideológico, mas também é eleitoreiro. E a tomada da Comissão de Ética é o mecanismo que eles têm para poder eliminar e afastar os adversários, ou quem pensa diferente”, comentou um conselheiro.
Ainda no fim de 2019, antes mesmo da eleição que escolheu os membros de cada um dos conselhos, a Igreja Universal publicou em seu portal o artigo “Conselho Tutelar: é nosso dever participar”.

Mudança nas regras da eleição
O decreto que regulamenta a Comissão de Ética dos CTs diz que os membros “serão escolhidos por maioria simples, em assembleia dos conselheiros tutelares reunida com, no mínimo, metade do número de membros, tendo mandato de três anos”.

Segundo as denúncias apuradas pelo G1, os conselheiros ligados à Igreja Universal se uniram e escolheram quais seriam os eleitos. O objetivo seria formar um grupo com a mesma orientação política e religiosa, com foco na manutenção do eleitorado do prefeito Marcelo Crivella e dos vereadores da base do governo.

De acordo com a denúncia, as irregularidades começaram com a mudança nas regras da votação. O conselheiro Fernando Brites, conhecido como Obreiro Fernando, sugeriu uma mudança no número de votos a que cada um teria direito durante o pleito.

A sugestão veio por mensagens de texto, para todos os 95 conselheiros do Rio que participam de um grupo virtual em um aplicativo de mensagens.

A ideia era que cada conselheiro pudesse votar em cinco nomes, acabando assim com a votação direta, como determina a legislação.

Logo em seguida, o conselheiro Felipe Machado, também evangélico, endossou a sugestão e encaminhou seu entendimento a favor da mudança.

A sugestão de alteração na regra do pleito ocorreu no dia 21 de janeiro, quatro dias antes da eleição. Um conselheiro identificado no aplicativo de mensagens como Flávio Santiago questionou a rapidez da votação pela mudança nas regras.

“Votação em 10 minutos. Parece que foi combinado. Votação pelo WhatsApp? Vamos para o fórum, discutir e votar. Vocês estão dando margem para judicialização. Triste”, comentou o conselheiro no grupo.
Alguns dos envolvidos mostravam que nem mesmo sabiam o que estava sendo votado.

“Então, eu estou confuso. Exatamente o que está sendo votado?”, perguntou alguém identificado como Reinaldo.

“O grupo da Universal controla 60% de todos os conselheiros tutelares da cidade. Mas ainda assim, com a votação direta eles não conseguiriam eleger os cinco da Comissão de Ética”, argumentou uma conselheira em contato com o G1.
Depois da mudança aprovada por troca de mensagens, 81 dos 95 conselheiros decidiram votar. Ao todo, 405 votos foram computados naquele pleito, um recorde entre todos os Conselhos Tutelares do Brasil.
Todos os eleitos são evangélicos e quatro deles atuam na Zona Oeste do Rio de Janeiro. São eles:

Gláucia Pacheco dos Santos Araújo, conselheira de Realengo;
Janaína dos Santos Fonseca, de Santa Cruz;
Rosemare Nunes Rodrigues, da Taquara;
Cleide Rosa Lima Ferraz, de Campo Grande;
Ivana da Silva Souza, conselheira da Zona Sul.

“É um modelo de votação irregular. Mesmo que todos concordassem com esse modelo, o que não aconteceu, essa votação vai contra o decreto que regulamenta a eleição da comissão de ética”, comentou um conselheiro ao G1.

Vereador tenta anular eleição
Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Câmara de Vereadores do Rio, o vereador Leonel Brizola Neto (PSOL) enviou ao Ministério Público uma representação questionando a eleição para a Comissão de Ética dos Conselhos Tutelares.

“Com a ilegalidade e irregularidade explícita para a escolha da Comissão de Ética, é urgente a necessidade de anulação desse processo eleitoral, a destituição da atual Comissão de Ética (podendo ensejar, judicialmente, a nulidade dos atos praticados por tal Comissão) e a convocação para um novo processo eleitoral que respeite o decreto regulamentar”, dizia um trecho do documento assinado por Brizola.

Novos currais eleitorais
A Comissão de Ética dos Conselhos Tutelares é responsável por receber, avaliar e dar seu parecer sobre qualquer denúncia de desvio de conduta dos conselheiros tutelares do município. Se a comissão decidir, ela pode afastar de suas funções qualquer um dos conselheiros ou funcionários da área administrativa.

De acordo com alguns trabalhadores, o domínio da Igreja Universal nos Conselhos Tutelares do Rio tem como objetivo formar currais eleitorais na cidade, visando à próxima eleição municipal, marcada para novembro.

Eles dizem que após a eleição da comissão, todas as pessoas que se colocaram contra esse grupo de evangélicos perderam condições de trabalho, foram perseguidas e até afastadas de suas funções.

Um dos trabalhadores contou que não consegue ter suas demandas atendidas pela prefeitura. O oposto ocorre com quem pertence ao grupo dominante.

“Os conselheiros tutelares ligados ao prefeito, quando mandam pedidos, são atendidos. Os outros conselheiros que não têm esse vínculo não são atendidos. Só é atendido se for através do MP e do juiz. É uma política assistencial de cunho eleitoreiro, com base no trabalho dos conselhos tutelares”, relatou.

“A prefeitura transformou o conselho em uma peça de assistência e não mais de garantia de direitos”, disse um dos conselheiros.
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), os conselheiros devem garantir os direitos básicos aos menores de idade. É de sua responsabilidade requisitar serviços obrigatórios, como vagas em colégios e em hospitais, além de propor políticas públicas.

“O poder do conselho hoje é muito forte nas comunidades. Por exemplo, uma criança sem vaga em creche. O pai procura um conselheiro, e se esse conselheiro for do grupo dominante ele vai conseguir rapidamente uma vaga para aquela criança. Mas se ele não for parte do esquema, ele não vai conseguir”.

“São os velhos currais eleitorais. A autonomia dos CTs está totalmente corrompida, e quem vai contra isso é eliminado”, completou um dos conselheiros que conversaram com o G1.
Prefeitura no comando
A Lei Municipal 3282/01, que rege o trabalho dos Conselhos Tutelares no Rio, diz que os conselhos são autônomos e independentes. Segundo a legislação, o conselheiro tem o dever de fiscalizar e cobrar o Poder Executivo sobre políticas públicas para crianças vulneráveis.

A Prefeitura do Rio, em resposta ao G1, disse que garante a autonomia dos conselhos e que só cabe ao Executivo o pagamento de salários.

Na prática, porém, é possível observar uma relação suspeita.

Logo depois da confirmação da eleição dos evangélicos na Comissão de Ética dos CTs, a prefeitura decidiu criar um uma nova função na estrutura municipal. No dia 6 de fevereiro, foi publicado no Diário Oficial do Município a criação da Coordenadoria de Apoio aos Conselhos Tutelares.

Para ocupar o novo cargo, o prefeito escolheu o ex-conselheiro Ahlefeld Marynoni Fernandes, que no último mandato atuou no conselho de Realengo, mesmo local onde atualmente trabalham o Obreiro Fernando, responsável por sugerir a mudança na votação para a comissão de ética, e Margarete Bastos, esposa de Ahlefeld.

O ex-conselheiro, que internamente é conhecido como ‘Rolifild’, foi afastado de suas funções no último mandato por suspeita de corrupção. O Ministério Público apresentou uma denúncia contra ele e o CMDCA recomendou seu afastamento. Atualmente, o processo contra Ahlefeld corre em sigilo no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ).

A prefeitura não explicou os motivos que levaram à contratação de alguém impedido de ser conselheiro para um posto de coordenador dos conselheiros. Além disso, o Executivo informou que entre as funções de Ahlefeld “está a de verificar as condições de trabalho e garantir o salário em dia dos conselheiros”.

Apesar de o município afirmar que não há conflito nas funções, é possível verificar nas redes sociais que Ahlefeld atua com frequência em agendas oficiais da prefeitura, sempre uniformizado.

“A criação dessa Coordenação de Apoio aos Conselhos Tutelares cria uma suspeita grave de aparelhamento dos CTs. É um cargo que não existe na estrutura dos conselhos tutelares e não deveria existir. Fere as normas legais e tira a autonomia do conselho tutelar”, comentou Brizola Neto.

Segundo a promotora Rosana Cipriano, titular da 1ª Promotoria da Justiça da Infância e da Juventude da Capital, a denúncia contra a nomeação de Ahlefeld para um cargo de confiança na prefeitura também está sendo investigada.

“Enviamos um ofício à prefeitura para esclarecimentos, mas ainda está em prazo para resposta. Possivelmente será encaminhado para Cidadania, para possível análise de improbidade, caso se confirme”, comentou a promotora.
O que diz a prefeitura
Em nota, a Prefeitura do Rio disse que o afastamento de Ahlefeld Marynoni de suas funções como conselheiro “não tem relação com a Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos”.

Segundo eles, “o caso citado foi conduzido pelos órgãos do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente”.

Sobre a eleição da Comissão de Ética dos Conselhos Tutelares, a prefeitura disse que o pleito é organizado pelos próprios conselheiros, sem interferência da prefeitura.

“A Secretaria de Assistência Social não acompanhou o processo eleitoral da Comissão de Ética. A participação da secretária limitou-se à organização do processo eleitoral dos novos Conselheiros Tutelares, em outubro de 2019, com posse em 10 de janeiro, e também atuamos na eleição do Conselho Consultivo, conforme orienta a legislação em vigor”, respondeu o órgão municipal.

Já o CMDCA-Rio solicitou, por ofício, ao gabinete do prefeito Crivella que a nomeação de Ahlefeld Marynoni fosse reanalisada. O órgão pede que toda a documentação justificando a contratação do ex-conselheiro seja encaminhada ao CMDCA.

Ainda sobre a eleição da Comissão de Ética, o CMDCA disse que não compete ao órgão participar deste processo.

“No entanto, avaliamos que há necessidade de maior detalhamento do processo de escolha dos membros da Comissão de Ética nas legislações que norteiam a eleição”, disse o CMDCA.

A reportagem entrou em contato com todos os cinco membros da Comissão de Ética dos Conselhos Tutelares.

Apenas as conselheiras Rosemare Nunes e Cleide Ferraz atenderam as ligações. As duas preferiram não se manifestar sobre as denúncias e afirmaram que a comissão vai se posicionar no momento oportuno, depois que tiver conhecimento de todas as acusações.

O coordenador Ahlefeld Marynoni também foi procurado pela reportagem, mas até a última atualização não havia retornado as mensagens e ligações.

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